Histórias das Cruzadas

domingo, 6 de janeiro de 2019

Jerusalém e as peregrinações



Com a conversão do imperador Constantino e a consequente aceitação do cristianismo como religião oficial do Império Romano, aumentou a busca por sítios e objetos ligados ao Messias. Consta que no século IV, Helena, mãe de Constantino, peregrinou por Jerusalém e empenhou-se em descobrir locais e artefatos relacionados com a paixão de Cristo. A historiadora francesa Régine Pernoud diz que dentre as descobertas feitas por Helena estava o que se acreditou ser o túmulo no qual, segundo a crença, Jesus permaneceu sepultado por três dias; nesse lugar foi construído um templo que recebeu o nome de Igreja do Santo Sepulcro, que logo se tornou o principal ponto de peregrinação para os seguidores de Cristo.

Por essa época, conforme explica o historiador francês Paul Veyne, de 70 milhões de habitantes que compunham o Império Romano, apenas cinco ou dez por cento professavam a fé cristã. Livre das perseguições, essa quantidade passou a crescer gradativamente. À medida que o cristianismo se expandia pela Europa, aumentava o número de fiéis que saíam do Velho Continente para conhecer a Terra Santa. De acordo com Paul Alphandery e Alphonse Dupront, essas jornadas haviam sido instituídas de tal forma que se criara uma estrutura composta por centenas de estabelecimentos para abrigar e atender os peregrinos em Jerusalém e proximidades. Por volta do final do primeiro milênio da era cristã, Raul Glaber, um cronista da época, descreveu a heterogeneidade dos indivíduos que se faziam presentes nas peregrinações:
“Primeiramente foram as pessoas das classes inferiores, depois as do povo médio, depois todos os maiores reis, condes, marqueses, prelados; enfim, o que nunca havia acontecido, muitas mulheres, as mais nobres com as mais pobres, dirigiam-se ali. A maior parte tinha o desejo de morrer antes de voltar ao seu país”

Cabe ressaltar que não era apenas a piedade que motivava o indivíduo a percorrer tão longo caminho. Conforme explicou o historiador Jônatas Batista Neto, “a Igreja estimulou criminosos e pecadores de todo tipo a buscarem o perdão de Deus na Terra Santa”, ou seja, as peregrinações para Jerusalém serviam também como forma de punição, tanto temporal quanto espiritual, para crimes e pecados cometidos. No século XI as peregrinações já estavam solidamente instituídas na Europa e uma interrupção, ou mesmo a dificultação, do acesso aos lugares considerados sagrados poderia acarretar reações por parte da cristandade.

Desde o século VII, quando os muçulmanos conquistaram Jerusalém, a entrada dos cristãos na referida cidade nunca fora proibida, porém esse panorama mudou com a ascensão da dinastia seljúcida. O caminho para Jerusalém se tornara inóspito para os peregrinos. Além das hostilidades enfrentadas no trajeto, a chegada em Jerusalém apresentava a esses viajantes um outro motivo para insatisfação: a cobrança de um imposto para entrar na cidade. Muitos desses peregrinos não tinham como pagar o tributo, pois já haviam perdido no caminho o que levavam consigo; muitos voltavam para casa — quando conseguiam voltar, sem cumprir a meta de chegar até o Santo Sepulcro; descreviam, então, os infortúnios aos quais haviam sido submetidos. Verdadeiros ou fantasiosos, tais relatos foram usados, segundo o historiador francês Jean Flori, para propagandear a necessidade de uma resposta cristã.

O fator Jerusalém foi, pois, decisivo para o êxito do projeto de Urbano II; uma simples menção do nome da Cidade Santa, diz o historiador alemão Hans Eberhard Mayer, gerava reações psicológicas e escatológicas, como se houvesse uma aura mágica ao redor daquele local. De acordo com o sociólogo alemão Norbert Elias, o apreço que os cristãos ocidentais tinham pela Terra Santa fomentou uma espécie de pressão social por sua reconquista. Independente do motivo que levou o indivíduo a tomar a cruz, a cruzada apenas aconteceu, com efeito, por causa da estima que os cristãos nutriam por Jerusalém.


Referências:

A mulher no tempo das cruzadas. (Regine Pernoud)

Guerra Santa: Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão (Jean Flori)

História da Baixa Idade Média: 1066-1453 (Jônatas Batista Neto)

História da Idade Média: textos e testemunhas (Maria Guadalupe Pedrero-Sánchez)

Historia de las cruzadas (Hans Eberhard Mayer)

La cristandade y el concepto de cruzada (Paul Alphandéry y Paul Dupront)

O processo civilizador, vol. 2: formação do Estado e civilização (Norbert Elias)

Quando nosso mundo se tornou cristão (Paul Veyne)