Histórias das Cruzadas

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Personagens das Cruzadas: Melisende de Jerusalém

Balduíno II foi o terceiro rei cruzado de Jerusalém. Não deixou herdeiros do sexo masculino, no entanto tivera quatro filhas mulheres. Ivete, a mais jovem, dedicou-se à vida monástica; Hodierna e Alice casaram com proeminentes senhores latinos; Melisende, a mais velha, recebeu a incumbência de suceder o pai no trono. Para isso, o rei considerou necessário que a futura rainha tivesse ao lado um esposo adequado.

Balduíno enviou emissários à Europa em busca de um marido para a filha. Vários nomes foram propostos, porém prevaleceu a indicação de Luís VI, rei da França, que propusera, então, Fulque, conde de Anjou, que foi prontamente aprovado pelos barões do Reino. O casamento ocorreu em 1122. Melisende teve dois filhos, Balduíno III e Amalrico. Ambos se tornaram reis de Jerusalém.

Um saltério que pertenceu a Melisende (presume-se que tenha sido presente de Fulque) é preservado no British Museum, em Londres. O túmulo da rainha está no Santuário Nossa Senhora de Josafá, em Jerusalém; nessa mesma igreja está o suposto túmulo de Maria, mãe de Jesus.

Referência:
Steven Runciman - História das Cruzadas, Vol. II: o Reino de Jerusalém e o Oriente Franco.
Imagens:
Túmulo de Melisende.
Iluminura contida no saltério da rainha.












domingo, 24 de março de 2019

O Concílio de Clermont

Em novembro de 1095 o então Papa Urbano II realizou um sínodo em Clermont-Ferrand, na França. Esse encontro ecumênico tratou, dentre outros assuntos, da excomunhão do rei francês, Felipe I, por adultério; de questões referentes à Trégua de Deus e da exortação à Primeira Cruzada. O referido evento ficou conhecido na história como o Concílio de Clermont, e pode ser considerado o ponto de partida da Primeira Cruzada.
Diversas demandas acerca do projeto da Cruzada foram deliberadas na conferência, como o período em que os cruzados deixariam a Europa em direção à Palestina, quem deveria ir, como se arcaria com os custos e, principalmente, as indulgências concedidas aos participantes da expedição. No Concílio de Clermont, o Papa convenceu o público presente que a população cristã do Oriente sofria ante a opressão imposta pelos muçulmanos e que uma reação ocidental era necessária e iminente. Constantinopla e, principalmente, Jerusalém deveriam ser socorridas.
Vários cronistas medievais transcreveram o discurso de Urbano II; alguns afirmam que presenciaram a assembleia, outros com base em testemunhas que lá estiveram. Todos esses escreveram suas crônicas alguns anos, ou mesmo décadas, após o Concílio; é, portanto, inverossímil imaginar que os textos são fidedignos ao sermão papal. Observamos duas crônicas que descrevem o discurso de Urbano, uma de autoria de Fulcher de Chartres, que fez parte do séquito de Baldwin na Primeira Cruzada, e, ao que parece, esteve presente em Clermont; outra composta por Guilherme de Tiro, que escrevera sua obra com base na tradição oral dos participantes da Primeira Cruzada. Ambos os documentos convergem em diversos aspectos.
A tônica do discurso de Urbano II foi expor para o público o sofrimento pelo qual os cristãos do Oriente estavam expostos diante dos opressores muçulmanos e invocar os cristãos do ocidente para que fossem em socorro de seus irmãos; para isso deveriam deixar de lado suas querelas pessoais e unirem-se nesse objetivo. As armas que antes empunhavam uns contra os outros deveriam ser empregadas contra um inimigo em comum. Fez uso de passagens bíblicas para ressaltar a importância de Jerusalém para a cristandade e mencionou a degradação na qual a cidade havia sido submetida. Por fim, enfatizou que o indivíduo que aderisse àquela empresa estaria praticando uma verdadeira obra de caridade e, como prêmio, receberia a indulgência plena: a remissão de todas as culpas. Não importava o pecado praticado ou crime cometido, o perdão estava garantido. O céu fora prometido.
Do ponto de vista de atrair adeptos, a assembleia foi um sucesso. Consta que imediatamente o público presente, aos gritos de Deus Vult!, Deus Vult!, tomou para si a causa. Fizeram cruzes com pedaços de tecidos e as coseram sobre as próprias vestes; demonstrava-se, dessa forma, a adesão àquela campanha. Através de cartas o Papa clamava o auxílio dos nobres que não estiveram em Clermont-Ferrand. Estabeleceu-se a trégua de Deus para que nenhum atrito detivesse os preparativos da Cruzada. Ficou decidido que a marcha se iniciaria em agosto do ano seguinte, imediatamente após as colheitas.
Observa-se, pois, que o desejo coletivo em aderir à peregrinação sobressaía à própria mensagem acerca da empreitada. Não foi necessário estar no Concílio de Clermont para que aqueles indivíduos fossem convencidos de ir para a Cruzada. O discurso proferido pelo Papa surtiu efeito não apenas com o público presente ao evento, uma grande leva de cristãos aderiu ao projeto assim que souberam dos planos de Urbano II. Ademais, pregadores populares, como Pedro, o Eremita, causaram com seus sermões a mesma comoção originada pelo Papa. Um discurso só causa o resultado desejado se a comunidade assim quiser. A prédica papal, de fato, foi ao encontro dos anseios de variados grupos.




Referências:
Jean Flori. Guerra Santa: Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão.
Roger Chartier. A história cultural: entre práticas e representações.
Maria Guadalupe Pedrero-Sanches. História da Idade Média: Textos e Testemunhas.
Guilherme de Tiro. Historias de Ultramar.
Steven Runciman. História das Cruzadas, Vol.I.

Imagem:
Prédica de Urbano II em Clermond. Extraída do “Livre des passages d'Outre-mer“ (1490). Conservado na Biblioteca Nacional da França.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Jerusalém e as peregrinações



Com a conversão do imperador Constantino e a consequente aceitação do cristianismo como religião oficial do Império Romano, aumentou a busca por sítios e objetos ligados ao Messias. Consta que no século IV, Helena, mãe de Constantino, peregrinou por Jerusalém e empenhou-se em descobrir locais e artefatos relacionados com a paixão de Cristo. A historiadora francesa Régine Pernoud diz que dentre as descobertas feitas por Helena estava o que se acreditou ser o túmulo no qual, segundo a crença, Jesus permaneceu sepultado por três dias; nesse lugar foi construído um templo que recebeu o nome de Igreja do Santo Sepulcro, que logo se tornou o principal ponto de peregrinação para os seguidores de Cristo.

Por essa época, conforme explica o historiador francês Paul Veyne, de 70 milhões de habitantes que compunham o Império Romano, apenas cinco ou dez por cento professavam a fé cristã. Livre das perseguições, essa quantidade passou a crescer gradativamente. À medida que o cristianismo se expandia pela Europa, aumentava o número de fiéis que saíam do Velho Continente para conhecer a Terra Santa. De acordo com Paul Alphandery e Alphonse Dupront, essas jornadas haviam sido instituídas de tal forma que se criara uma estrutura composta por centenas de estabelecimentos para abrigar e atender os peregrinos em Jerusalém e proximidades. Por volta do final do primeiro milênio da era cristã, Raul Glaber, um cronista da época, descreveu a heterogeneidade dos indivíduos que se faziam presentes nas peregrinações:
“Primeiramente foram as pessoas das classes inferiores, depois as do povo médio, depois todos os maiores reis, condes, marqueses, prelados; enfim, o que nunca havia acontecido, muitas mulheres, as mais nobres com as mais pobres, dirigiam-se ali. A maior parte tinha o desejo de morrer antes de voltar ao seu país”

Cabe ressaltar que não era apenas a piedade que motivava o indivíduo a percorrer tão longo caminho. Conforme explicou o historiador Jônatas Batista Neto, “a Igreja estimulou criminosos e pecadores de todo tipo a buscarem o perdão de Deus na Terra Santa”, ou seja, as peregrinações para Jerusalém serviam também como forma de punição, tanto temporal quanto espiritual, para crimes e pecados cometidos. No século XI as peregrinações já estavam solidamente instituídas na Europa e uma interrupção, ou mesmo a dificultação, do acesso aos lugares considerados sagrados poderia acarretar reações por parte da cristandade.

Desde o século VII, quando os muçulmanos conquistaram Jerusalém, a entrada dos cristãos na referida cidade nunca fora proibida, porém esse panorama mudou com a ascensão da dinastia seljúcida. O caminho para Jerusalém se tornara inóspito para os peregrinos. Além das hostilidades enfrentadas no trajeto, a chegada em Jerusalém apresentava a esses viajantes um outro motivo para insatisfação: a cobrança de um imposto para entrar na cidade. Muitos desses peregrinos não tinham como pagar o tributo, pois já haviam perdido no caminho o que levavam consigo; muitos voltavam para casa — quando conseguiam voltar, sem cumprir a meta de chegar até o Santo Sepulcro; descreviam, então, os infortúnios aos quais haviam sido submetidos. Verdadeiros ou fantasiosos, tais relatos foram usados, segundo o historiador francês Jean Flori, para propagandear a necessidade de uma resposta cristã.

O fator Jerusalém foi, pois, decisivo para o êxito do projeto de Urbano II; uma simples menção do nome da Cidade Santa, diz o historiador alemão Hans Eberhard Mayer, gerava reações psicológicas e escatológicas, como se houvesse uma aura mágica ao redor daquele local. De acordo com o sociólogo alemão Norbert Elias, o apreço que os cristãos ocidentais tinham pela Terra Santa fomentou uma espécie de pressão social por sua reconquista. Independente do motivo que levou o indivíduo a tomar a cruz, a cruzada apenas aconteceu, com efeito, por causa da estima que os cristãos nutriam por Jerusalém.


Referências:

A mulher no tempo das cruzadas. (Regine Pernoud)

Guerra Santa: Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão (Jean Flori)

História da Baixa Idade Média: 1066-1453 (Jônatas Batista Neto)

História da Idade Média: textos e testemunhas (Maria Guadalupe Pedrero-Sánchez)

Historia de las cruzadas (Hans Eberhard Mayer)

La cristandade y el concepto de cruzada (Paul Alphandéry y Paul Dupront)

O processo civilizador, vol. 2: formação do Estado e civilização (Norbert Elias)

Quando nosso mundo se tornou cristão (Paul Veyne)