Histórias das Cruzadas

sábado, 10 de fevereiro de 2018

“Já havia muito tempo que essas duas irmãs, essas duas metades da humanidade, a Europa e a Ásia, a religião cristã e a muçulmana, tinham-se perdido de vista, quando foram postas face a face pela Cruzada e olharam uma para a outra. O primeiro olhar foi de horror”.
(Jules Michelet, Histoire de France)

Abaixo: Ilustração de uma batalha entre cristãos e muçulmanos.
Autor desconhecido.
Ricardo, Coração de Leão, e as leis relativas aos cruzados (1189)

Ricardo I (1157-1189), cognominado “Coração de Leão”, foi coroado em 1189 e, em todos os sentidos possíveis, teve um breve reinado. Impetuoso e idealista, o novo rei logo se lança vigorosamente às Cruzadas, deixando seu país durante longas temporadas sob a administração de seu conselho real. Entretanto, sabe-se que ele não resistiria ao fatídico ferimento sofrido no ardor de uma batalha travada em território francês, evento este que abre o caminho para a conturbada ascensão de seu irmão João, posteriormente chamado de “Sem Terra”.
Logo no primeiro ano de seu reinado, Ricardo I e seu conselho Real definiram conjuntamente um regulamento que tinha por objeto o direcionamento do cotidiano dos cruzados em sua longa jornada por mar para alcançar Jerusalém (Laws of Richard I (Coeur de Lion) Concerning Crusaders Who Were to Go By Sea, 1189). Em face do contexto e das novas realidades jurídicas interpostas pela longa viajem nos navios, foram estabelecidas regras de direito criminal para disciplinar as relações entre os marinheiros.
As penas previstas para os crimes cometidos a bordo das embarcações eram, ao mesmo tempo, cruéis e curiosas. Destarte, os assassinos seriam amarrados ao cadáver e jogados no oceano. Todavia, se o homicídio tivesse sido praticado em terra firme, previa-se a incineração do infrator. Em se tratando de lesões corporais graves, consideradas pela lei de Ricardo como aquelas que acarretavam “derramamento de sangue”, a amputação da mão seria a punição maior destinada aos transgressores. Uma lesão leve, entretanto, condicionava, três vezes seguidas, o lançamento do criminoso ao mar. A injúria associada à calúnia resultava no pagamento de uma pena pecuniária (em prata), que seria calculada pela quantidade de ofensas dirigidas ao companheiro.
Os ladrões, a seu turno, seriam submetidos a uma série de castigos corporais que tinham por objetivo causar dor, sofrimento e extrema vexação. Para  tanto, inicialmente,  a cabeça do indivíduo era raspada, como forma de impor-lhe humilhação. Depois derramava-se sobre a calva água fervente. Por último, obrigava-se a pessoa a usar adornos específicos, para que fosse de conhecimento público o crime por ela cometido, sendo esta logo abandonada à sua sorte na primeira praia em que o navio viesse a atracar.

Rodrigo Freitas Palma - História do Direito, páginas 260-261

Guilherme de Tiro

Guilherme de Tiro

Guilherme de Tiro nasceu em Jerusalém, por volta do ano 1130; começou a ser educado na escola do Santo Sepulcro, instituição que visava instruir jovens que pretendiam seguir carreira eclesiástica. Presume-se que na adolescência Guilherme já havia aprendido o idioma árabe e grego, além do latim. Prestes a completar dezesseis anos de idade viajou para a Europa com intuito de prosseguir com seus estudos. Em Orleans cursou Artes Liberais; em Paris aprofundou-se nos aprendizados teológicos. Fora, então, para Bolonha, à época um renomado centro de estudos jurídicos, onde recebeu instrução em Direito.
Devido ao longo período que permaneceu em solo europeu, cerca de 15 anos, é possível que precocemente já havia começado a exercer funções sacerdotais em alguma das cidades em que estivera, pois assim que regressa ao Oriente, por volta de 1160, torna-se cônego em Acre e arcediago em Tiro. Sua formação intelectual o credenciaria para ascender na hierarquia da Igreja e também a ocupar cargos na administração do Estado; em 1170 fora nomeado chanceler do Reino de Jerusalém pelo rei Amalrico, função que exerceu até 1174. Outra incumbência delegada ao clérigo foi cuidar da educação do filho do monarca; Guilherme se tornou tutor da criança que mais tarde se tornaria Balduíno IV, o Rei Leproso. Foi nosso cronista, inclusive, a descobrir que o príncipe havia contraído lepra, uma das doenças mais temidas na Idade Média. Em 1175 Guilherme tornou-se Arcebispo de Tiro.
Dentre os trabalhos diplomáticos, sabe-se que Amalrico enviou uma embaixada liderada por Guilherme de Tiro à Constantinopla com a finalidade de solicitar o apoio do Imperador bizantino, Manuel Comneno, para uma ação conjunta contra o Egito. Foi recebido com cortesia e firmou um acordo com Manuel no qual estabeleceram as divisões de uma eventual conquista; entretanto, quando Guilherme regressou a Jerusalém Amauri já havia levado seu exército em direção ao Cairo, antes mesmo de saber a resposta do Imperador.
Nota-se algumas diferenças entre o Arcebispo de Tiro e outros autores das cruzadas; os cronistas cristãos eram sujeitos nascidos no Ocidente que se dirigiam à Síria e Palestina como integrantes dos séquitos de nobres senhores europeus. No início do movimento cruzadista até a tomada de Jerusalém, os cristãos tinham o hábito de destruir todos os livros e demais manuscritos muçulmanos encontrados, pois consideravam como algo diabólico os caracteres árabes. Os textos de Guilherme apresentam a perspectiva de um indivíduo inserido na cultura oriental, inclusive fez uso de fontes árabes para construir sua narrativa, além dos fatos que pôde presenciar e relatos obtidos junto aos primeiros cruzados. Por estar próximo dos acontecimentos, Régine Pernoud o considera como o melhor dos historiadores das cruzadas; Steven Runciman acrescenta que este ierosomilitano é um dos maiores historiadores de todo o período medieval; Christopher Tyerman define Guilherme de Tiro como o historiador dos historiadores. Por solicitação de Amalrico, o Arcebispo também elaborou uma série de crônicas que expunham a história do Oriente desde o tempo do Profeta Maomé até meados do XII, contudo, infelizmente, essa obra se perdeu no tempo.
No momento em que compilou sua obra acerca das cruzadas, intituladas Historia rerum in partibus transmarinis gestarum, o próprio Guilherme de Tiro menciona que as crônicas abrangiam até o ano de 1184 e manifesta o desejo de continuar a escrevê-las enquanto a vida lhe permitisse. Por opção própria ou por motivos de força maior deixou de desempenhar o ofício que exerceu com muito apreço, competência e imensa erudição. Sua narrativa encerra-se quando o cronista abordava sobre os momentos ainda, de certa forma, estáveis da gestão de Balduíno IV. O Arcebispo de Tiro faleceu em Roma, por volta de 1186.

Referências:

A Mulher nos Tempos das Cruzadas – Régine Pernoud
Historia de las Cruzadas – Hans Eberhard Mayer
Historias de Ultramar – Guillermo de Tiro
História das Cruzadas, Volumes I e II – Steven Runciman
Uma Nova História das Cruzadas – Christopher Tyerman

Imagem:
Manuel Conmeno e os mensageiros de Amauri (séc. XIII). Biblioteca Nacional da França

Castelo de Bouillon

Castelo de Bouillon

Construído por volta do século X, o Castelo de Bouillon está localizado no sul da Bélgica e pertenceu a Godofredo, duque de Bouillon, um dos líderes da Primeira Cruzada.

Como forma de de arrecadar fundos para financiar sua expedição à Terra Santa, Godofredo penhorou diversas propriedades, dentre elas o Castelo de Bouillon que fora, então, vendido ao bispo de Liége. O Duque, porém, deixou acordado com o Bispo que, caso conseguisse regressar da Cruzada, poderia reaver seu castelo mediante a devolução da mesma quantia que recebera por ele. Godofredo, no entanto, nunca retornou às suas terras e o castelo permaneceu sob posse dos bispos de Liége durante os seis séculos seguintes.

Referência:

Crônica de Hainaut (c.1171-1195).
http://www.ricardocosta.com/traducoes/textos/cronica-de-hainaut#footnote70_9chelsz

Imagem:

https://sobreturismo.es/2010/03/09/el-castillo-bouillon-uno-de-los-mas-antiguos-de-belgica/